
A cidade de Carapicuíba, na Grande São Paulo, tornou-se o principal destino de emendas Pix no Brasil, com destaque para o apoio de parlamentares da bancada evangélica. Desde 2020, o município já recebeu R$ 157 milhões por meio dessa modalidade de repasse direto, que evita burocracias, mas também dificulta o controle público. Desse montante, 58% vieram de deputados ligados à frente evangélica, que, em muitos casos, têm pouca representatividade eleitoral no município.
A liderança de Carapicuíba nesse tipo de repasse chama atenção por uma contradição: a cidade, com cerca de 367 mil habitantes, é apenas a 17ª mais populosa do estado, mas concentrou quase R$ 9 de cada R$ 100 repassados a todos os municípios paulistas via emendas Pix. Em comparação, a capital paulista, muito mais populosa, recebeu três vezes menos proporcionalmente e mantém um portal ativo de transparência dos recursos — algo que ainda falta em Carapicuíba.
O principal nome da lista é o deputado federal e pastor Marco Feliciano (PL), que destinou R$ 33,9 milhões à cidade. A quantia chama atenção pelo contraste com sua votação em Carapicuíba: apenas 2.198 votos em 2022. Já em sua cidade natal, Orlândia, onde teve três vezes mais votos, Feliciano destinou somente R$ 500 mil.
Outros parlamentares evangélicos como Vinicius Carvalho (Republicanos), Milton Vieira (Republicanos), Gilberto Nascimento (PSC), Jefferson Campos (PL) e Roberto de Lucena (Republicanos) também aparecem entre os maiores repassadores. Ao todo, sete deputados evangélicos encaminharam R$ 92 milhões a Carapicuíba, mesmo sem base eleitoral significativa na cidade.
A prefeitura alega que o volume recorde de repasses se deve ao “bom relacionamento com parlamentares de diversos partidos e orientações políticas”. Já Marco Feliciano afirmou, por meio da assessoria, que “não há qualquer direcionamento específico” da bancada evangélica e que Carapicuíba é “uma cidade populosa e merecedora dos recursos”.
O crescimento das emendas Pix tem gerado controvérsias, especialmente pela dificuldade de rastrear como o dinheiro é aplicado. O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP) já cobrou mais transparência de Carapicuíba, que está entre o terço das cidades paulistas com maior opacidade nas informações prestadas. Em 2023, o TCE investigou 100 municípios, incluindo Carapicuíba, e identificou falhas na resposta sobre o uso de recursos.
O Tribunal de Contas da União (TCU) também apontou a falta de transparência em mais de 6 mil emendas Pix em todo o país. A partir disso, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino determinou que estados e municípios apresentem planos de trabalho detalhados para cada emenda recebida.
A própria Prefeitura de Carapicuíba afirma que os dados estão no portal Transferegov, mas a reportagem identificou diversas inconsistências e informações incompletas, como emendas que não indicam o local das obras, sua metragem ou se são em áreas urbanas ou rurais.
A confusão sobre o destino das emendas tem gerado insatisfação até entre os próprios parlamentares. A deputada Ely Santos (Republicanos) destinou R$ 200 mil para um castramóvel, a pedido de um vereador local, mas o recurso aparece registrado no sistema federal como destinado à “manutenção de infraestrutura”. A parlamentar afirmou que não recebeu retorno da prefeitura sobre o uso da verba e que o equipamento não foi comprado.
Roberto de Lucena, ex-deputado e hoje secretário estadual de Turismo, também afirmou que os recursos que destinou à saúde acabaram utilizados em recapeamento asfáltico e outras ações diversas, segundo os dados do governo federal. Ele alega que o plano de trabalho da prefeitura foi apresentado nove meses após a indicação, quando ele já não estava mais no cargo.
Apesar da avalanche de recursos, Carapicuíba ainda enfrenta sérios problemas com obras paralisadas ou malfeitas. Um dos símbolos da má gestão é o esqueleto de uma creche na Vila Veloso, abandonada há anos. Iniciada em 2016, a construção foi paralisada há três anos e, segundo funcionários que voltaram recentemente ao local, segue sem previsão de conclusão. O prédio, pichado e deteriorado, já figurou em relatórios do TCE como exemplo de má aplicação de recursos públicos.
A explosão das emendas Pix coincidiu com a gestão do ex-prefeito Marcos Neves (PSDB), responsável por grande parte das negociações com os parlamentares. Seu sucessor, José Roberto (PSD), também aliado político, continua colhendo os frutos das verbas encaminhadas, mas enfrenta o desafio de dar respostas mais claras sobre sua utilização.
A situação de Carapicuíba expõe as fragilidades do modelo das emendas Pix, que, apesar de oferecer agilidade, coloca em xeque a transparência, a efetividade dos gastos públicos e a lógica da representatividade no direcionamento dos recursos. Com cobranças de tribunais, parlamentares e da sociedade civil, o município agora se vê no centro de um debate nacional sobre o futuro dessa modalidade de repasse.